sábado, 3 de março de 2012

COMO VIVIA O MINHOTO NOS COMEÇOS DO SÉCULO PASSADO?

Sob o título “Como vive e de que vive o agricultor do Minho”, a revista “Ilustração Portugueza”, na sua edição nº 9 da II Série de 1906, publicou uma extensa reportagem da autoria de F. Neves Pereira, fazendo um retrato social do Minho nos começos do século XX, descrevendo o modo de vida das suas gentes no ambiente rural e, sobretudo, das dificuldades que enfrentava para sobreviver sem perder a alegria da vida.

   No único aposento da casa, coberta de colmo esburacado ou telha vá, de rudes paredes de pedra sobreposta, por cujas fendas entra o frio e o vento, nasce a criança minhota, sem assistência de parteira, no mesmo catre bárbaro do noivado. Uma hora antes de dar á luz, a mãe põe ao fogo do lar a trempe de ferro com agua para o banho. O marido está nos campos a sachar, a lavrar ou a podar as vinhas. Vai uma vizinha chama-lo para ver o filho, que nasceu. No dia seguinte é o batisado. Quatro dias depois, a mãe aparece na eira com o filho ao colo. Passada uma semana, leva-o com sigo para o campo ou para o monte. Durante dois anos, – ás vezes mais, – lhe dá o seio. Já o pequeno come boroa e ainda mama. Exposta ás intempéries, ao calor e ao frio, ao sol e á chuva, como um animalsinho bravio nascido no monte, sob uma lapa, a criança ou sucumbe ou fortalece. As mais das vezes cria-se, resistente e forte, nesse severo regime de selecção natural. Apartada do leite, é então invariavelmente abandonada á educação do próprio instinto. Aos cinco anos ensinam-lhe a resar. Aos sete anos confiam-lhe a guarda dos bois. A criança passa já os dias no monte, solitária, pastoreando o gado. O monte é a sua primeira escola e quase sempre a única. Aos dez anos, começa a preparar-se para a comunhão, indo á doutrina. Aos doze anos comunga. E a vida de trabalho ininterrupto principia. Rapaz ou rapariga, que já é de comunhão, é uma criatura emancipada. Se os pais são pobres, vão servir. Se são filhos de um lavrador remediado, fazem em casa o tirocínio árduo da lavoura. O criado de servir começa por ganhar o salário de dois mil réis por ano e os usos. Mais tarde, dos dezoito aos vinte anos, chegam a ganhar, os mais diligentes, ao serviço de lavradores mais abastados, três moedas. Mas este salário é um fenómeno. Os usos variam com a idade dos serventes: uma a três camisas de estopa, um ou dois pares de calças de cotim ou saias de riscado, um colete e uns tamancos. Aos rapazes, as amas, por contrato, remendam-lhes e lavam-lhes a roupa.

As relações entre estes servos pobres e estes amos tão pobres como eles são familiares sem isenção de respeito. O minhoto tem, como o romano, seu antigo senhor, a noção inata da hierarquia.

Por volta dos vinte e dois anos, o moço de lavoura, tendo concluído a sua aprendizagem, e livre de soldado, casa-se. É tão raro ficar um lavrador ou lavradeira sem casar como haver moço que não lute tenazmente, para se furtar ao tributo do sangue. O casamento é no Minho a base essencial á independência. Moço ou moça que não case fica condenado a servir toda a vida ou a trabalhar a jornais. Toda a economia social desta vasta província portuguesa assenta sobre a constituição da família. Quando se fizer o estudo social minucioso, que de há muito devera estar concluído, da população do reino, ver-se-há que a densidade do Minho, a intensidade das suas culturas e a sua imensa capacidade tributária derivam do seu regímen familiar. Dai e porque a caserna contamina o minhoto com o desprezo pela labuta da terra e lhe predispõe o organismo para exigências maiores de alimentação, de vestuário e de conforto, o recusar sistematicamente os pais a mão das filhas a todo o pretendente que um dia vestiu farda. Ter sido soldado, ter comido o rancho, ter dormido numa tarimba, é um ser  repudiado. O soldado conheceu no quartel uma vida melhor. Esse passado afasta-o da comunhão dos rústicos. Implacavelmente, o campo expulsa-o para a cidade, de onde ele veio. Por isso o lavrador se despoja de quanto tem para livrar o filho de soldado e casalo. O casamento é a aspiração unânime, o fim para que tendem todos os esforços, o prémio conquistado com as canseiras as mais indescritíveis, quando, afinal, esse casamento representa apenas a pobreza a dois, o trabalho a dois. O idilio, meio sensual e meio lírico, iniciado nas romarias, nas desfolhadas e no adro da Igreja, termina com a boda para se converter numa obstinada refrega pelo pão.

Ordinariamente, a noiva leva para o casal um cordão e umas argolas de oiro e o noivo as alfaias indispensáveis para o granjeio das terras. Os parentes e os amigos oferecem aos esposados, alguns duas galinhas, outros uma raza de milho ou de centeio, outros dois pedaços de pano de linho, um colher de ferro para a panela, meia dúzia de tigelas ou de pratos de barro, meio alqueire de feijão, a pá para o forno, um molho de lenha… Se um deles é filho de lavrador abastado, este abona-lhes o gado: uma junta de bois medianos para principiar e uns touros novos para a engorda. Algumas vezes, raras, levam ainda em dote uma ceva morta e meia pipa de vinho. O primeiro dia de casados é para os noivos pobres o primeiro dia de trabalho árduo. Vão amanhar os dois umas terras pequenas, que tomam de renda barata; arranjam um creadito novo, de pequeno ganho, que os ajude no mourejar dos campos e a ama nos arranjos da casa. Desde o nascer do dia até noite fechada trabalham ambos no campo ou na eira. À noite, até altas horas, a mulher fia, junto da lareira apagada, a teia com que há de fazer as primeiras camisas e os primeiros lençóis. O homem descansa da labuta do dia, ajudando a mulher a dobar o fiado.

Feitas as podas, as mergulhias, os enxertos e as sementeiras, e antes das colheitas, quando a lavoura abranda, o homem vai ás feiras, vende os bois, compra outros mais baratos e ganha alguns tostões em carretos de pedra. A mulher, no entanto, cora a teia, lança ninhadas de frangos e galinhas e engorda os cevados… para vender. Mas esses pobres teem uma riqueza: são independentes. Enquanto pagarem com o que a terra lhes dá a renda por que a tomaram, essa terra que eles lavram e cavam e semeiam pertence-lhes. É dessa terra, adubada com o seu suor, que lhes vem, com o sustento, o orgulho de um domínio que se lhes afigura sem partilha. São deles as aguas, os campos, as árvores, os montes, a eira e a casa. Não existe para eles, como para o operário, um patrão dominador e imperativo. Só eles mandam na sua fabrica, de que são, simultaneamente, rendeiros e operários.

O alimento deste casal de noivos pobres reduz-se a pouco mais do que a caldo e pão. O homem que trabalha da aurora até á noite, a mulher que o acompanha na sua lida incessante, comem menos do que as crianças da cidade.  Se a gravidez a não deformou já, é uma mocetona corada e jovial, de larga bacia fecunda, de grandes seios, de roliços braços de trabalhadora e de amorosa. O homem é musculoso e rijo. Ambos cantam enquanto sacham. Nenhuma tristeza perturba esse casal pacifico e laborioso. Gosam amplamente os dois  saúdes humanas: a moral e a física, de cuja união resultam as felicidades perfeitas. O trabalho é o seu regime moral. Veja-se também em  que consiste o seu regime alimentar na base da saúde do corpo.

O caldo destes trabalhadores infatigáveis reduz-se a algumas couves galegas, apanhadas na horta, a alguns feijões – poucos, porque são caros, – e um magro fio de azeite como adubo. O pão é de milho e centeio, cozido em grandes fornadas de dois ou três alqueires… para durar, tornar-se rijo e render mais! O cozer pão a miúdo é prejudicial á economia. Porque  come-se mais enquanto é fresco e quantas mais vezes se acende o forno mais lenha se consome! Raras, muito raras vezes,a sardinha é merenda, comem os lavradores, como presigo de longe a longe.Quando o sardinheiro as vende a mais de 5 ao vintém, a mulher aventura-se a gastar dez réis nesse luxo supérfluo!

Quando um quartilho de azeite, nas aldeias do Minho podia custar seis ou sete vinténs, durava a um casal pobre de 15 dias a um mês, com isto está  completado o quadro impressionador da espantosa economia minhota .

Anos há, porém, em que o pão escasseia, a arca se esgota, e o preço do alqueire de milho sobe, como há  anos, acima de oito tostões. Então, o lavrador passa a comer pão de centeio e semeia batatas para substituir o tesouro alimentício da boroa de milho. Á salgadeira – os que a teem – vão apenas pelas festas do ano: o Entrudo, a Pascoa e o Natal, ou em dias de trabalho extraordinário, quando não podem de todo, sozinhos, granjear as terras, e rogam o auxílio dos vizinhos, que vêem ajudar, sem jornal, só pela mantença.

Uma família de lavradores minhotos que, não satisfeita com as dádivas generosas da terra: pão, batatas, hortaliça, feijão, fruta e lenha, gasta em alimentação, vestuário e demais necessidades da vida para cima de dez tostões por mês, ou é rica ou está perdida!

Parecendo á primeira vista impossível que tão insignificante quantia possa chegar ao custeio de uma casa, verifica-se, em face de um ligeiro orçamento, que ela é suficiente e não é mesmo atingida as mais das vezes.

O exíguo orçamento de um casal de lavradores no Baixo-Minho pode resumir-se, para as primeiras necessidades, a quatro verbas únicas e modestíssimas:

Azeite…………...240 réis

Sardinhas…..……100 réis

Sal…………….….20 réis

Sabão…………….60 réis

Ou um total de    420 réis


Ficam de fora as despesas de vestuário. Uma andaima de roupa para homem, que pode custar aproximadamente 8$000 réis, dura entre 5 e 10 anos. Quase sempre descalço, o lavrador não chega a romper por ano um par de tamancos. O chapéu, que custa de seis a dez tostões, serve apenas nos dias de feira ou de romaria. No serviço, o lavrador usa a carapuça de lã no Inverno e o chapéu de palha, de vintém, no verão.

A parte o ouro que compram com as economias do casal e que, como o gado, é considerado fortuna comum, as mulheres gastam ainda menos do que os homens! Duas saias de chita clara, dois aventais com barras de veludo, um colete de riscado cor de rosa com guarnições de fitilho preto, um lenço farto para o seio e mais dois para a cabeça, são objectos que as mais pobres adquirem apenas duas vezes na vida: quando noivas e quando, mais tarde, casam o primeiro filho! As mais abastadas compram de dez em dez anos uma saia de baeta crepe, de ano a ano um lenço de seda, de dois em dois anos umas chinelas de verniz. São as pródigas.

Roupa branca, lençóis, toalhas e ainda as calças de uso dos homens saem do linho, da estopa ou dos tomentos – da teia fiada em casa. Em noites de luar, as mulheres fazem o seu serão á porta, economizando

A própria doença parece respeitar esse culto sagrado da economia dos lavradores do Minho. Mata-os a velhice. Quando entram na agonia, a família manda chamar o padre para os confessar e ungir. Depois do padre vem então o medico, que raro receita e as mais das vezes chega a tempo de verificar o óbito.

E assim morrem economicamente, como economicamente nasceram e viveram…


                               Por Manuel Abreu Castro          

                                                                          De                    
                                                                                bloguedominho
                                                                                  Carlos Gomes

     

Nenhum comentário: